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Relato de parto de Eleonora Moraes - nascimento da Ananda

A conquista de um parto normal transformador após trocar de obstetra com 40 semanas de gestação

 

Troquei de médico 10 dias antes de minha filha nascer. Uma tarefa árdua já que o obstetra antigo (uma pessoa querida e meu médico há 9 anos) me dizia que meu bebê não nasceria de parto normal porque meu colo de útero estava ainda grosso e ela não encaixada com 39 semanas de gestação. Marcou a cesárea para dali a alguns dias. Fiquei primeiro decepcionada com "meu corpo falho", uma tristeza indescritível tomou conta de mim mais uma vez. Mas algo aqui dentro falou mais alto. Fui atrás de informação, principalmente no site das Amigas do Parto e tive apoio sincero e virtual da Ana Cris e do obstetra Ricardo. Encontrei outro profissional na minha cidade que aguardou naturalmente a chegada de minha filha. Foi uma guinada que me permitiu a descoberta de mim mesma, de minha força e de minha grandeza como mãe e mulher.

 

Segue abaixo o meu relato:

 

"À noite, no mesmo dia em que mudei de obstetra e fiquei mais próxima de me apropriar do nascimento da minha filha, tive um delírio, destes de quando se está meio acordada, meio dormindo, de que minha cama era toda de palha. Podia sentir as lascas de palha debaixo de meu corpo, podia até mesmo pegá-las com a mão. Ali, ao meu lado, me olhando com uma enorme ternura, estava o meu marido (que de fato estava mesmo, só que dormindo), sentado na cama e segurando um cronômetro, ou um relógio em suas mãos. Aos meus pés, agachada no chão e tendo as mãos sobre a cama, eu via uma figura humana muito iluminada, clara, parecia uma mulher de cabelos claros e vestes claras, sem rosto muito definido. Eu estava tendo contrações (acho que de verdade, como todas as noites anteriores) e estes dois seres iluminados, amados e ternos me amparavam. A cama me amparava. Acordei de sobressalto: eu estava no meu ninho! Eu havia feito, ganhado, encontrado o meu próprio ninho e estava pronta para parir.

 

Para a minha agonia, não entrei em trabalho de parto naquela noite. Nem na outra, nem no dia seguinte, nem na semana seguinte. Passou-se mudança de lua, aniversário de meu pai, caminhadas, caminhadas, descolamento da bolsa do colo do útero (uma indução mecânica para o parto) e nada. Uma ansiedade impiedosa me avassalava naqueles dias. No sábado pela manhã, minha mãe em casa, parentes telefonando, as crianças questionando, todos prontos, prontíssimos, aguardando e nada. Nada de Ananda querer sair de lá. Nada de meu corpo funcionar, parecia que o trabalho de parto se iniciava a toda hora, mas não pegava. Comecei a pensar, é claro, que o ex-obstetra tinha razão. Fiquei deprimida, chorei, deitei no meu quarto escuro e lá fiquei por horas. Levantei-me para almoçar e umas manchas enormes na minha visão apareceram e me assustaram e deprimiram ainda mais. Era tudo estranho. Mal comi e voltei para o quarto. Tive uma “conversa séria” com Ananda. Pedi a ela que, por favor, me enviasse um sinal de que tudo estava certo, de que era só aguardar o tempo dela que ela viria naturalmente, sem agressividade alguma e no tempo certo. Qualquer sinal, qualquer sonho, qualquer coisa...

 

Resolvemos ir ao cinema com as crianças para distrair um pouco. Tomei meu banho, me enxuguei, vesti minha saia e notei nela uma cáca de nariz bem grande. Uma cáca de nariz?! Credo. De onde veio isto?! Fui calçar a sandália e lá estava outra meleca, ainda maior grudada em meus pés. Descobri que a meleca vinha da minha toalha, descobri que a meleca era o tampão que havia saído de mim assim, como um aviso de uma fruta madura pronta para cair de seu galho.

 

De fato, na mesma noite, deitada em meu ninho, as contrações começaram ritimadíssimas e cada vez mais fortes: a cada 15 minutos, depois a cada dez minutos, e logo a cada cinco minutos. Eram fortes, dolorosas e maravilhosas de serem sentidas. Havia chegado a hora. Sem pressa, liguei para a médica que estava de plantão em outro hospital. Tomei um banho e fomos, eu e o Wladi, rumo ao hospital do plantão da médica. Minhas contrações se descompassaram desde o momento em que me arrumava para sair de casa. Era desconfortável por roupa, vestir sapato, entrar no carro, andar de carro. Sentia as contrações naquele momento como que querendo impedir meu corpo de se movimentar rumo a parir longe do meu ninho, longe de minha cama, longe de minha casa. Mas, naquela altura, eu tinha mesmo que enfrentar o hospital e toda a sua equipe de ilustres desconhecidos. E também, minha felicidade em estar em trabalho de parto era tamanha que qualquer adversidade seria sentida com entusiasmo. Seja o que Deus quiser!

 

Exame feito e tecnicamente constatado que eu estava em trabalho de parto (como se eu não soubesse!), recebi a guia de internação para a Maternidade e a prescrição de ocitocina numa dose bem baixinha, segundo a médica, 4 gotas por minuto, apenas para ajudar a ritmar as contrações novamente e não para acelerar o parto. Confesso que fiquei bastante decepcionada com a indicação, mas aceitei, concordando com o fato delas estarem sem ritmo algum (hoje eu sei que existem outras maneiras naturais e menos arriscadas de se ritmar as contrações, mas na hora foi só o que eu pude fazer). Sair do ninho implica em algumas perdas.

 

Carro de novo, entra e sai, contrações amalucadas, fortes e fracas, desritmadas. O Wladi preenche as intermináveis fichas enquanto eu me contorço nas cadeiras da espera de emergência. A cada contração tenho vontade de me deitar no chão ou em qualquer lugar e ali ficar bem quietinha, só com o Wladi ao meu lado. Logo vem a cadeira de rodas pra me levar à ala da maternidade, o que eu aceito sem pestanejar porque a cada cinco passos vinha uma contração daquelas. Sentia-me em um parque de diversões.

 

Chegando lá, tira brinco, relógio, roupa, tudo e põe o fatídico avental verde (olha a azeitona gorda aí, gente!). As enfermeiras se espantam com a prescrição da médica: “não é para fazer tricotomia?? Só 4 gotas por minuto??? Fulana, acho que a doutora se enganou, liga pra ela!” Procuro acalmá-las dizendo que é isso mesmo, me deito de lado na cama da sala de pré-parto e vejo que sou a única ali. A maternidade estava só para mim. Estende o braço, procura veia, fura o braço, erra, fura de novo: a maldita ocitocina. A enfermeira brigando com o contador de gotas dizendo ser muito difícil regulá-lo só para 4 gotas/minuto: “ah, isso é porque a doutora tá de plantão e não quer correr o risco do nenê nascer antes dela chegar. A hora que ela chegar, vai socar a mão nesse soro e estourar a bolsa e aí esse nenê nasce rapidinho, cê vai vê.” E vem contração porreta, muito mais forte agora: maldita ocitocina! Na sala onde estava, bem ao alcance da minha vista, três caixas transparentes cheias de parafernálias cirúrgicas e uma etiqueta escrita a mão: “cesárea de urgência” me olhavam insistentemente. Era só abrir o olho e lá estavam elas, me vigiando. Wladiiiii, cadê você? Precisava desesperadamente dele ao meu lado para me sentir realmente segura. Finalmente ele veio e não saiu do meu lado um segundo sequer. Ajudou a controlar o soro com a meticulosidade de bom virginiano que é e aí tudo ficou bem. As contrações maneirinhas, aumentando aos poucos, progressivamente.

 

Eu me sentia ali com dupla personalidade, tal qual o médico e o monstro. Estava ótima, rindo, fazendo graça, no maior papo com o Wladi, feliz da vida, no meio de uma conversa e de repente vinha uma contração. A expressão muda, a respiração muda, o corpo se contrai, as mãos precisam se agarrar em algo, espremer algo (pobre da mão de Wladizinho), a dor aumenta, aumenta, aumenta, e aí... pronto, o papo continua de onde parou e vamos em frente.

 

Quase seis da manhã e a médica chega. Conversa comigo e com a Ananda, acaricia a barriga, mede a dilatação. Quatro centímetros. O que? Mamãe! Só isso? Tendo contrações há mais de 6 horas e só 4 dedinhos?! A previsão é de que ela venha ao mundo só as 9:30 da manhã. Respiro fundo e juro a mim mesma que agüentarei firme. Ana me oferece água, pergunta se tenho fome, se quero tomar uma ducha, mas eu, tal qual um bicho aninhado, não gosto da idéia de me mexer muito e sair da posição em que estava.

 

Ananda havia se encolhido inteirinha no lado direito do útero, segundo a médica, a fim de liberar a minha circulação da artéria aorta para facilitar o trabalho de parto. Me emocionei. O que é a natureza, meu Deus. E o outro querendo arrancá-la dali quatro dias antes...

 

As contrações iam aumentando e exigindo outras posições do meu corpo. Me deitei com barriga para cima, com a cabeceira da cama bem inclinada e as pernas dobradas. Agora precisava fazer força de expulsão para suportar a dor das novas contrações. Eram pouco mais de sete horas da manhã e eu sabia que faltava pouco para que ela viesse ao mundo. Minha dilatação tinha chegado a oito centímetros e duas contrações depois a dez! A médica foi “ficar bonita para receber a Ananda” (por roupa, máscara, etc). Um leve corre corre na equipe, outra contração animal e a infeliz da enfermeira pondo touca e sapatinhos em mim e eu, em vão, tentando pedir que ela esperasse, fazendo sinal com as mãos.

 

Fui para a sala de parto andando (era ao lado do pré-parto), tive outra contração na porta da sala, uma dor terrível e um desconforto muito grande. Fim da contração. Sobe na maca, a equipe alvoroçada. Chamam o pediatra plantonista porque o que pedi só chegaria às 9 horas. A médica não encontra o material que precisa, as contrações agora não dão trégua, a cabecinha já coroada, as enfermeiras querendo amarrar meu braço (pode?), meu marido sabiamente pede que não. Pés no estribo também amarrados, não consigo falar, nem pedir nada. A maca parecia uma tábua de passar roupa, dura, fria, estreita e sem qualquer, mas qualquer inclinação. Horrível. A dor beira ao insuportável e eu me entrego a ela, grito, berro, não sei se respiro, se falo, se faço força. A equipe de olhos arregalados, o pediatra acariciando nervosamente minha cabeça me pedindo calma. Um desespero começa a me rondar, a dor insuportável e o medo de fazer força. Eu me entrego: Ana! Vai rasgar tudo! Faz o pique! Eu não agüento mais! (pique = episiotomia - um corte feito no períneo para apressar o parto. Eu não fazia idéia do estrago que uma episiotomia desnecessária faz na mulher, se fosse hoje jamais a pediria!)

 

Olho para Ana e a vejo serena, sem elevar a voz ou fazer qualquer movimento brusco. Percebo a sala pouco iluminada e o tom de sua voz ao me dizer: “Tá tudo bem Eleonora, deixa rasgar.” Caraca! Ou vai ou vai. Nova contração, me concentro e me entendo com a dor novamente. Uma força descomunal me vem e Wladi emocionado me diz que está vendo a cabecinha dela pra fora. Uma quentura maravilhosa jorra para fora de mim e só então vejo aquele serzinho maravilhoso, com um furinho no queixo, lutando com o corpo todo para respirar os primeiros ares deste mundo. Ana a segura com um carinho maternal, como se quisesse niná-la, a espera de que ela encontre sozinha o caminho de sua respiração. Eu me sinto grande, enorme, maior do que aquela minúscula sala, maior do que o planeta, do tamanho do universo. Uma energia poderosa e indescritível preenche o meu mundo todo. Lembro-me de tudo o que percorri para estar ali, de todo o sofrimento, de toda a verdade, de toda a dúvida. É a confirmação de minha intuição, é o respeito pelo meu corpo, pela minha gravidez, pelo meu parto, por mim mesma. Eu havia conseguido. Minha luta fora certeira e bem recompensada. Wladi me abraçava, chorava, “você é uma guerreira, minha Pan”.

 

Ananda veio para os meus braços. É linda, parece uma indiazinha, os cabelos pretos e fartos, a pele marrom avermelhada. Ouve nossa voz, abre os olhinhos como quem procura algo já conhecido. Tento fazer com que ela mame, mas as enfermeiras nervosas insistem em levá-la logo para todos os procedimentos de praxe que prefiro nem pensar quais são. “Não mãezinha, tem que pesá-la, viu? Já já você vai ter o seu nenê, viu?” Ai que ódio! Como se amamentá-la ali fosse alterar o seu peso ou sei lá o que. Nenê no quarto? “Só depois do almoço, normas do hospital, mãezinha. Você precisa descansar, dormir um pouco.” Como se alguém pudesse dormir depois de parir seu próprio filho...

 

Tenho vontade de me levantar dali e ir a pé até o quarto e tomar um merecido banho. Mas é claro que não pode. Me sento para mudar de maca. Sinto-me ótima, inteira, cansada, mas em pleno êxtase. Espanto-me ao não sentir absolutamente nenhuma dor ao me sentar. Não havia dilacerado nada. Ana me diz que o fato do nenê nascer dentro da bolsa amniótica protege o canal vaginal todo, evitando a laceração. Levei apenas dois pontos internos, dados só por excesso de zelo, para ajudar na cicatrização.

 

Já no quarto, tomo meu café da manhã com a voracidade de um bichinho faminto. Minha disposição após uma noite inteira em trabalho de parto é impressionante. Totalmente diferente do pós-parto vaginal que tive há oito anos atrás, no nascimento da minha primeira filha. Tenho vontade de reviver tudo de novo, de parir de novo e desta vez ousar ainda mais, não me afastando de meu ninho, tendo o nenê na minha casa, na minha cama, com gente carinhosa e sensível ao meu lado para me ajudar nas horas mais difíceis. Tendo, principalmente, o meu nenê ao lado depois do nascimento.

 

O parto da Ananda foi lindo, avassalador. E, na minha história, não poderia ter sido melhor. A postura da médica foi maravilhosa em quase todos os aspectos. Mas não houve uma equipe nem um lugar a altura desta experiência. Penso que se tivesse tido mais tempo, prepararia melhor o meu parto e exigiria condições melhores, procedimentos mais humanos dentro daquele hospital e menos gente para atrapalhar. Se Ana tivesse uma equipe no hospital com uma visão igual a dela, meu Deus, seria outro parto, ainda mais natural e extremamente acolhedor. Eu estaria no meu ninho e, ao invés de dois seres iluminados me amparando, o mundo todo estaria ali a me acalentar.

 

Tive sorte de não estar nunca sozinha e ter ao meu lado, o tempo inteiro, a pessoa mais maravilhosa do mundo a me amparar, iluminar e proteger. Sem o meu amado anjo Wladi não seria capaz de suportar toda a dor e enfrentar tudo o que enfrentei para chegar até este parto. Sem o meu anjo amado não seria quem eu sou hoje. E penso que sem uma pessoa sensível e amorosa ao lado, uma mulher parindo em um hospital, não sente só dor e solidão. Ela sofre e sofre muito, e certamente desperdiça quase todo o deleite do sagrado que um parto pode lhe trazer."

 

 

Eleonora Moraes

Ribeirão Preto - SP

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