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Posicionamento a respeito do PL 435/2019


São Paulo, 12 de junho de 2019.

Posicionamento a respeito do PL 435/2019

Nós, integrantes da Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa, vimos por meio desta nos manifestar a respeito do PL 435/2019, de autoria da deputada Janaina Paschoal, que tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Atuamos desde 2006 na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com representantes em todo o país, e por trabalharmos com foco na atenção ao parto e nascimento, reivindicamos que o referido projeto de lei tramite seguindo os ritos usuais da casa, passando por apreciação das comissões de saúde e da mulher. Tal reivindicação baseia-se nos fatos elencados a seguir.

As mulheres NÃO preferem a cesariana: há muitas décadas os estudos nacionais mostram que as mulheres não preferem a cesariana, ao contrário, a maioria delas deseja o parto normal e espera por ele. (Faúndes et al., 2004; Dias et al., 2008; Potter et al., 2001; Domingues et al., 2014; Reiter et al., 2018).

Para aquelas mulheres que chegam ao final da gestação e desejam uma cesariana, os dados nacionais e estaduais mostram que essa cesariana está acessível, inclusive no setor público, uma vez que mais da metade das mulheres dá à luz por via cirúrgica. (Datasus, 2019).

No Brasil, vivemos uma situação em que a cirurgia cesariana se tornou tão frequente que ela se banalizou. No senso comum, avalia-se que o nascimento cirúrgico seja tão ou mais seguro que o parto normal, o que não encontra justificativa do ponto de vista científico. A banalização da cesariana acontece, entre outros fatores, porque vivemos em uma sociedade que sobrevaloriza a tecnologia e não discute os efeitos adversos de seu emprego excessivo. (Diniz, 2009). É nesse contexto, de uso excessivo de intervenções médicas e tecnológicas, e pouco ou nenhum debate sobre seus efeitos adversos, que surge a discussão sobre a oferta indiscriminada da cesariana como via de nascimento, sob a falsa justificativa de que se trata de uma demanda das mulheres.

Os estudos têm demonstrado cada vez com mais profundidade os problemas decorrentes das altas taxas de nascimentos cirúrgicos, tanto do ponto de vista populacional como do ponto de vista individual, de cada mulher e de cada bebê. As taxas de cesariana populacionais que ultrapassam o patamar de 10% não previnem mortes nem morbidades de mulheres e bebês. (WHO, 2015).

Além disso, muitas mulheres quase morrem no parto, em um evento grave que chamamos de near miss materno. Tanto as mortes como os casos de near miss estão muito associados ao uso intensivo e inadequado de tecnologias. Vale dizer que uma assistência segura é aquela baseada em evidências científicas e com respeito aos direitos humanos das mulheres. No caso do parto e nascimento, isso significa intervir somente quando necessário, ou seja, empregar os recursos tecnológicos de forma adequada. (WHO, 2010, 2016, 2018; Aguiar, 2016; Souza et al., 2010, Dias et al., 2014).

Muitas mulheres que passam por uma cirurgia cesariana sofrem com sequelas graves que podem comprometer sua vida (e a do feto) em futuras gravidezes, como a inserção anormal da placenta. Este problema muitas vezes pode provocar hemorragias graves, exigir a retirada do útero e mesmo levar à morte da mulher e do bebê. Quanto mais cesáreas a mulher tiver, maiores as chances de os problemas graves acontecerem. (Kaplanoglu et al., 2015; Arlier, 2017)

Para os nascidos por cesárea, além de maiores chances de serem prematuros, há maiores dificuldades para o estabelecimento da amamentação e do vínculo mãebebê. Além disso, devemos destacar que há cada vez mais evidências científicas sobre os efeitos negativos do nascimento cirúrgico sobre a vida e a saúde da criança, que se estendem até a vida adulta, como maiores chances de asma, diabetes, obesidade e dificuldade de aprendizado. (Black et al., 2016; Dahlen et al., 2014)

Vivemos um período de “transição obstétrica”, em que não conseguiremos reduzir a mortalidade materna se não melhorarmos a qualidade da assistência e se não enfrentarmos o excesso de medicalização da assistência ao parto e nascimento. (Tesser et al., 2014)

[...] os países, as regiões dentro dos países e grupos populacionais dentro dos países estão frequentemente em diferentes pontos do caminho para eliminar a mortalidade materna. Graças ao desenvolvimento econômico e social e à implementação de políticas que modificam os determinantes sociais da mortalidade materna (por exemplo, os programas de transferência condicional de renda) ou que remediam e atenuam os seus efeitos (por exemplo, o fortalecimento do sistema de saúde e a melhora da qualidade da assistência), os países têm apresentado uma gradual transformação dos padrões de mortalidade materna. Esse fenômeno de “transição obstétrica” é caracterizado pela tendência secular de passagem de um padrão de alta mortalidade materna para baixa mortalidade materna, de predominância das causas obstétricas diretas de mortalidade materna para uma proporção crescente de causas indiretas associadas às doenças crônicodegenerativas, envelhecimento da população materna e modificação da história natural da gravidez e do parto para um padrão de institucionalização da assistência, aumento das taxas de intervenção obstétrica e eventual excesso de medicalização." (Souza, 2013, p. 534).

O uso de tecnologias de saúde favorece a redução da morbimortalidade materna, mas a hipermedicalização ou o uso excessivo e desnecessário das tecnologias de saúde na assistência à gestação e ao parto representam também riscos para as mulheres, fetos e recém-nascidos. Nos estágios finais da transição obstétrica, quando a mortalidade materna passa a ser inferior a 50 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos, os riscos associados à hipermedicalização da maternidade tornam-se mais evidentes. [...] No Brasil, país que tem se aproximado dos estágios finais da transição obstétrica, a situação não é diferente. Em muitos hospitais, o parto abdominal tornou-se a norma: o Brasil é hoje um dos países com maiores taxas de cesárea em todo o mundo. Mais do que apenas uma taxa sobre a via de parto, a alta taxa de cesáreas indica o grau de hipermedicalização da maternidade em que se situa o país. Esse é um problema complexo e multifatorial, cujas causas incluem, entre outras, o protagonismo dos obstetras na assistência ao parto, as armadilhas do sistema de saúde que tornam a cesárea mais conveniente para muitos profissionais de saúde e a percepção de considerável parcela da população sobre uma possível superioridade dessa via de parto. [...] sobressai a necessidade de se enfatizar a importância da Prevenção Quaternária em obstetrícia. O conceito de prevenção quaternária complementa aqueles de prevenção primária, secundária e terciária e foi desenvolvido pelo médico generalista belga Marc Jamoulle. Conceitua-se a prevenção quaternária como o conjunto de atividades empregadas para identificar pessoas que estejam sob risco de hipermedicalização e reduzir as intervenções desnecessárias ou excessivas a fim de minimizar as iatrogenias. Em outras palavras, a prática da prevenção quaternária é a prática do princípio de “primeiro não lesar” (primum non nocere), reconhecido como um dos fundamentos que orientam as práticas de saúde. No contexto da saúde materna e perinatal, a prática da prevenção quaternária é indissociável da prática baseada em evidências científicas, da humanização do parto e do combate à violência obstétrica. Aliás, o enfrentamento da violência obstétrica deve ser encarado como uma questão prioritária para o setor de saúde, pois representa a desumanização do cuidar e a perpetuação do ciclo de opressão feminina pelo próprio sistema de saúde. (Souza; Pillegi-Castro, 2014, p. S12).

Nesse sentido, é fundamental reduzir intervenções desnecessárias ou excessivas, ou exercitar o princípio ético de "primum non nocere", em primeiro lugar não causar dano. Isso se materializa com combate à violência obstétrica e implementação de cuidado baseado em evidências científicas e direitos humanos das mulheres.

Referências bibliográficas

Aguiar CA. “Por um fio”: memórias e representações de mulheres que vivenciaram o near-miss materno. Tese (doutorado em ciências) – Faculdade de Saúde Pública da USP. São Paulo, 2016.

Arlier S, Seyfettinoğlu S, Yilmaz E, Nazik H, Adıgüzel C, Eskimez E, Hürriyetoğlu Ş, Yücel O. Incidence of adhesions and maternal and neonatal morbidity after repeat cesarean section. Arch Gynecol Obstet. 2017 Feb;295(2):303-311.

Black M, Bhattacharya S, Philip S, Norman JE, McLernon DJ. Planned Repeat Cesarean Section at Term and Adverse Childhood Health Outcomes: A Record-Linkage Study. PLoS Med. 2016 Mar 15;13(3):e1001973.

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