“Estou na fila do overbooking”, avisou nossa companheira Thais M. Bárrall. Ela era uma das dezenas de pessoas que aguardavam para adentrar o auditório já lotado da Procuradoria Regional da República em São Paulo, onde aconteceu a audiência sobre episiotomia na tarde de 23 de outubro. Promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), a audiência teve como objetivo fomentar o debate a respeito desse procedimento.
Além das procuradoras da república Ana Carolina Previtalli Nascimento e Luciana da Costa Pinto, responsáveis pelo inquérito que investiga a violência obstétrica em São Paulo, compuseram a mesa as médicas Melania Ramos de Amorim (Universidade Federal de Campina Grande), Carmen Simone Grilo Diniz (Faculdade de Saúde Pública da USP) e RossanaPulcineli Francisco (Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo – Sogesp) e o médico João Batista Marinho de Castro Lima (Hospital Sofia Feldman, de Belo Horizonte – MG). Um breve relato dos pontos altos dessas apresentações pode ser conferido mais abaixo.
As falas das pessoas presentes à mesa sem dúvida foram muito importantes e elucidativas, tanto do ponto de vista de evidências científicas como das linhas de pensamento de cada uma delas e das instituições que representam. Porém, a maior riqueza da audiência, na minha humilde opinião, foi produzida por mulheres comuns, como eu e você. Mulheres que tiveram seus corpos violados e seus desejos ignorados no momento de dar à luz, mulheres que sofreram episiotomiae se dispuseram a relatar seu caso na audiência. Impossível não se sensibilizar diante de alguém que carrega no corpo cicatrizes decorrentes de um procedimento realizado à revelia de seu desejo, além (ou talvez principalmente) da cicatriz que ela carrega na alma... esta não aparece nos exames e não tem correção cirúrgica. E ambas as marcas interferem na autoimagem da mulher, na sua autoestima, nas suas relações sexuais e no seu relacionamento conjugal.
Infelizmente não pude permanecer até o fim da audiência – pois eu sou mãe também, precisava pegar meu filhote na escola e não conto com ninguém que me ajude nesse sentido, como muitas outras brasileiras. Relato isso pois acredito que tenha relação com o que enfrentamos na assistência ao parto: a mulher em suas angústias sempre é tratada como algo menor, é mulherzinha, é mãezinha, mesmo que mate dois leões por dia para dar sustento, educação, valores, amor e carinho a seus rebentos. Mesmo que se informe e se aproprie das evidências sobre assistência ao parto para buscar uma experiência significativa, prazerosa e segura, a mulher é tratada como uma “sub-cidadã”, uma pessoa com menos direitos: a parturiente não tem o direito de recusar tratamento e não tem autonomia para defender sua integridade física e moral, ainda que esses sejam direitos e preceitos expressos nas leis brasileiras.
Assim, parece-me mais do que oportuno que a audiência tenha sido promovida por uma instância que visa à defesa da coletividade. Agradeço enormemente às procuradoras pela iniciativa e pela astúcia em convidar a Sogesp e representantes de serviços públicos e privados. Temo que muitos deles já não estavam no auditório quando do depoimento das mulheres, mas ainda assim creio que as palavras delas não serão simplesmente carregadas pelo vento, com o reforço de que toda a audiência foi gravada. Aproveito para agradecer Laura e Aline Thais, que frequentam o modesto grupo que eu e Deborah Delage tocamos e que corajosamente se dispuseram a falar diante do auditório lotado. Agradeço, ainda, a todas as demais conhecidas (e desconhecidas) que por lá estavam, as quais não conseguiria nomear aqui individualmente. Importa dizer que juntas somos muitas e somos fortes – e tenho certeza que o impacto da audiência não seria o mesmo sem a participação de cada uma de nós.
Breve relato das apresentações
Os médicos da mesa apresentaram seus pontos de vista a respeito da episiotomia. As professoras Melania Amorim e Simone Diniz contribuíram com seu conhecimento a respeito dessa cirurgia. Exibiram dados de estudos científicos e deram sugestões sobre como o panorama atual pode ser modificado. De modo leve e descontraído, apoiaram o abandono da episiotomia. Enquanto Dra. Melania Amorim recomendou que os profissionais que assistem o parto se sentem em cima das próprias mãos para evitar a “síndrome da mão boba obstétrica” (que faz episiotomia “sem pensar”), Dra. Simone Diniz indicou que a situação atual, no Brasil, assemelha-se muito à vivida na Inglaterra na década de 1970. À época, as inglesas compararam a episiotomia a uma forma de violência urbana: a mulher deitada de pernas abertas, ao sofrer a episiotomia, é tão vítima de agressão quanto um pedestre subitamente atacado a facadas por um desconhecido.
Dra. Rossana Francisco, coordenadora científica da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo (Sogesp), apresentou superficialmente alguns dos dados já exibidos anteriormente por Dra. Melania Amorim. Contudo, sua leitura dos estudos e seu discurso evidenciaram que, no entender da instituição que ela representa, a responsabilidade por qualquer dano ligado à episiotomia é da própria mulher. Ela insistiu, assim, que a mulher e sua família precisam ser “educadas” e que o grande desafio no que se refere à episiotomiacorresponde a “fazer o conhecimento chegar a todos”. Desse modo, ela tirou do profissional de saúde – e de entidades como a Sogesp – qualquer responsabilidade sobre a redução das taxas de episiotomia no Brasil, mesmo após reconhecer que essa cirurgia é realizada excessivamente até para os padrões mais intervencionistas. Dra. Rosana Francisco finalizou sua apresentação afirmando que as evidências atuais não são suficientes para apoiar o fim da episiotomia.
Por fim, Dr. João Batista Lima relatou o caso do Hospital Sofia Feldman (Belo Horizonte – MG), maior maternidade do país em número de nascimentos. Quem já está inserido nos debates sobre humanização do nascimento há algum tempo já ouviu falar “do Sofia”, instituição filantrópica que atende somente pelo SUS e que preza pela medicina baseada em evidência na organização e na prestação de seus serviços. Por isso mesmo, desde o fim da década de 1990 as enfermeiras obstetras atendem as parturientes consideradas de risco habitual, o que, segundo o médico, é a grande tecnologia empregada para manter as taxas de episiotomia em apenas um dígito.
Balanço
Passados alguns dias da audiência, pego-me refletindo sobre sua importância. Oportunidades como essa podem e devem ser replicadas, com forte articulação para dar voz a diferentes setores da sociedade, mesmo que não sejam concordantes com o paradigma da atenção centrada na mulher, grande bandeira da Parto do Princípio. E como sugestões para as próximas ocasiões, eu cito a necessidade de garantir (mais) condições para a participação de mulheres com bebês e a urgente inclusão de usuárias (nós!) e de enfermeiras obstetras e obstetrizes como atores principais nesse jogo, inclusive compondo a mesa principal de apresentações.
Denise Yoshie Niy
Grupo MaternaMente ABC (www.maternamente.com.br)
Parto do Princípio
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