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Escolhendo a Cesárea

Marsden Wagner 

 

"Ao optar por uma cesárea agendada, você e seu médico estabelecem uma data em que entrarão no hospital de maneira razoavelmente tranqüila e despreocupada, e ele extrairá seu bebê através de um pequeno corte acima dos seus pêlos pubianos. Existem inúmeras razões para se agendar uma cesariana – outras mulheres escolhem a cesariana porque querem manter o tônus vaginal de uma adolescente, e seus obstetras encontram uma explicação médica que convencerá a seguradora."

— VIovine, The girlfriends’ guide to pregnancy (1995)

 

Esta declaração de um popular livro norte-americano ilustra o nível de tolerância da sociedade para com a escolha de cesariana pela mulher e para com a fraude cometida pelos médicos contra a seguradora. Esse tipo declaração é reforçado quando o novo presidente da Academia Americana de Obstetrícia e Ginecologia ("American College of Obstetricians and Gynecologists") refere-se a este procedimento cirúrgico abdominal de grande porte como "aprimoramento da vida".1 A cesariana tem salvado as vidas de muitas mulheres e bebês em todo o mundo. Então, por que não permitir à mulher a escolha da cesárea? Infelizmente, a opção de escolher (ou exigir) não é tão simples. Cesáreas, mesmo quando eletivas, implicam sérios riscos para a mãe e o bebê.

 

Parece haver um movimento nos círculos médicos para promover o direito da mulher de escolher a cesariana. Em 1997, um jornal de obstetrícia publicou uma pesquisa com médicas obstetras, na qual 31% destas mulheres declararam que, se tivessem uma gravidez única, sem complicações e a termo, optariam pela cesariana.2 O BMJ3 e o NEJ Med4 se juntaram a esse movimento. Em 1999, no BMJ, uma professora de Letras feminista lamentou que "preconceitos médicos e sociais contrários à libertação da mulher de sua condenação bíblica ao parto doloroso ainda estão entre nós", e um defensor dos consumidores declarou, "não acredito que alguém tenha o direito de exigir que a mulher tenha um parto vaginal".5 Existe uma relação interessante entre a promoção da escolha por parte da mulher e o grau em que o procedimento é favorável aos médicos. Tentar um parto normal após uma cesárea (PNAC) é mais seguro que fazer outra cesárea, mas não existem artigos em jornais médicos promovendo o direito da mulher de escolher um PNAC. A cesariana é favorável aos médicos; o PNAC não.

 

Riscos

 

Por trás das tentativas de se justificar a escolha das mulheres pela cesárea está a afirmação: "a cesariana nunca foi tão segura". Existe uma gradação dos riscos nas emergências obstétricas, que vai desde a cesárea planejada para evitar complicações, quer com a mãe, quer com o feto, até a cesárea escolhida pela mulher sem indicações médicas. A maioria dos dados a respeito dos riscos apenas diferencia a cesariana "de emergência" da "eletiva", mas, considerando-se que muitos dos riscos existem independentemente do motivo pelo qual a cesárea é feita, a cesárea eletiva, como uma cirurgia abdominal de grande porte, ainda apresenta riscos maiores.

 

A resposta para a pergunta "Qual é o nível de segurança da cesariana?" depende de quem está respondendo. Se a cesárea é feita, a mulher e seu bebê correm riscos, enquanto que se a ela não é feita, o médico corre riscos. Isto ajuda a explicar porque riscos comprovados para a mulher e seu bebê não são amplamente discutidos e normalmente não são apresentados pelos médicos.

 

Os dados mais confiáveis sobre mortalidade materna vêm do "Inquérito Confidencial do Reino Unido sobre Morte Materna" ("UK Confidential Enquiries into Maternal Deaths"). Embora possa ter sido uma política obstétrica omitir o capítulo habitual sobre mortalidade materna relacionada à cesariana, dois cientistas calcularam essa taxa a partir de dados do relatório.6 Uma cesárea eletiva sem característica de emergência apresentou um risco 2,84 vezes maior de morte materna do que um parto vaginal nas mesmas condições. Dado que o controle aleatório desse tipo de pesquisa não é eticamente possível, os dados do Reino Unido acerca de 153.929 procedimentos eletivos fornecem fortes evidências do aumento do risco de morte materna com a cesárea por escolha da mulher.

 

Outros riscos incluem a morbidade associada a qualquer procedimento cirúrgico abdominal de grande porte (acidentes anestésicos, danos aos vasos sanguíneos, prolongamento acidental da incisão uterina, danos à bexiga ou a outros orgãos7). 20% das mulheres desenvolvem febre após a cesariana, na maioria das vezes devido a infecções iatrogênicas.7 Existem também os riscos relacionados à existência de uma cicatriz no útero, incluindo diminuição da fertilidade, aborto, gravidez ectópica, placenta abrupta e placenta prévia.7-9 O uso indiscriminado da condenada droga misoprostol para indução do trabalho de parto criou um novo risco. Mulheres que tentam um parto vaginal após cesárea a quem se administra misoprostol apresentam uma taxa de ruptura uterina de 5,6%, comparada com uma taxa de ruptura de 0,2% em mulheres na mesma situação e que não são submetidas à droga.10 Todos estes riscos afetam gravidezes subseqüentes, mesmo que a cesárea não tenha sido emergencial.

 

Numa cesárea de emergência em que o bebê apresenta algum problema durante o trabalho de parto, os riscos da cirurgia para o bebê são provavelmente superados pelos riscos de não realizá-la. Nos casos em que o bebê não está com problemas, ainda existem riscos para ele, o que significa que uma mulher que escolhe a cesariana submete seu bebê a um perigo desnecessário. O fato de algumas mulheres, ainda assim, optarem pela cesariana é um forte indício de que elas não foram advertidas disso.

 

O primeiro risco para o bebê é a chance de 1,9% de o bisturi do cirurgião acidentalmente lacerar o feto (6% nas apresentações não-vértice, ou não-cefálicas).11 Os obstetras podem estar menos cientes deste risco – em um estudo, apenas uma das 17 lacerações fetais foi registrada pelo médico.11 Um risco muito mais sério é o de complicações respiratórias. O procedimento da cesariana por si só é um forte fator de risco para a síndrome da angústia respiratória em bebês prematuros, e para outras formas de disfunções respiratórias em bebês a termo.7 O risco de o bebê apresentar a síndrome da angústia respiratória é significativamente reduzido quando se permite à mulher entrar em trabalho de parto antes da cesárea.

Outro perigo é a prematuridade iatrogênica. Mesmo com repetidas ultrassonografias, existem erros de diagnóstico sobre quando realizar a cesariana. Cesáreas eletivas após o início do trabalho de parto reduziriam este risco. Tanto a síndrome da angústia respiratória quanto a prematuridade são causas importantes da morbidade e mortalidade neonatais.

 

Benefícios

 

Os benefícios da cesárea dependem do motivo que levou a realizá-la. Quando a cesárea é escolhida pela mulher, a característica da cesárea de emergência de salvar vidas não está presente.

 

A ausência de dor, como um benefício para a mulher, é uma falsa promessa. A possibilidade de marcar a cesárea antecipadamente realmente oferece conveniências para a mulher e sua família. A promessa de manter "o tônus vaginal de uma adolescente" (freqüentemente anunciada em livros populares e em hospitais latino-americanos) é real, embora provavelmente beneficie mais o parceiro sexual do que a própria mulher. Alega-se que a cesárea provoca menos danos à genitália, mas muitos dos danos apresentados atualmente no parto vaginal são causados pela prática de se apressar um segundo estágio de trabalho de parto descomplicado, pelo uso desnecessário do fórceps ou do vácuo-extrator, e pela episiotomia desnecessária.7,8 Em países como o Brasil, onde os direitos reprodutivos não estão disponíveis em sua totalidade para as mulheres, a cesárea proporciona uma oportunidade para a esterilização sem caracterizar uma contravenção aberta da lei.

 

Na cesárea por escolha da mulher, não há evidências científicas que sugiram qualquer benefício para o bebê. As mulheres que escolhem um parto "natural" ou domiciliar são criticadas por alguns médicos por serem egoístas, por estarem mais preocupadas com suas próprias necessidades do que com a segurança do bebê, críticas que não são baseadas em evidências. Considerando-se as evidências sobre os riscos e a ausência de benefícios para o bebê quando as mulheres escolhem a cesárea, o rótulo "egoísta" seria mais adequado para as mulheres que fazem essa escolha – não fosse pelo fato de que estaríamos assim culpando as vítimas. Muito freqüentemente a opção da mulher pela cesárea está baseada num medo profundamente enraizado e em falta de autoconfiança, resultantes da atitude daqueles médicos que temem, eles próprios, o parto vaginal e, portanto, alimentam a ansiedade de suas pacientes.

 

Em contraste, há muitos benefícios para o médico.

 

Uma razão comumente apresentada para as altas taxas de cesárea é a "obstetrícia defensiva". Numa pesquisa recente, 82% dos médicos utilizaram essa prática para evitar processos por negligência.12 Quando um parto tem resultados negativos, os médicos são processados e criticados por não terem lançado mão de intervenções tais como a cesárea. Os médicos são raramente criticados por intervenções desnecessárias. No entanto, a obstetrícia defensiva viola o princípio fundamental da prática médica: todo e qualquer procedimento adotado pelo o médico deve ser realizado antes de tudo e principalmente para o benefício do paciente. Se um médico faz uma cesárea porque tem medo de ser processado ou porque teme os altos custos do seguro, este médico não está praticando boa medicina.

 

Obstetras tendem a culpar as mulheres, os advogados e o sistema legal por tantos litígios, ao invés de analisarem o seu próprio papel. Na Irlanda houve um aumento de 450%, entre 1990 e 1998, nas ações por negligência médica, e os casos de obstetrícia e ginecologia representaram quase metade dos processos que resultaram em indenizações.12 A União de Defesa Médica ("Medical Defence Union") propõe um procedimento mais acessível para reclamações, uma solução que pode evitar que as queixas cheguem aos tribunais, mas que não dá conta da insatisfação subjacente das mulheres. Por que há essa insatisfação geral com os serviços das maternidades na Irlanda? Nesse país há pouquíssima escolha em relação a esse tipo de serviço. Quase todos os hospitais praticam um "manejo ativo" altamente estruturado, uma abordagem que teve início em Dublin, na qual "ativo" refere-se à equipe médica, e não à mulher que está parindo, e na qual a escolha é efetivamente eliminada. Outra fonte de insatisfação deriva de uma promessa não cumprida. Para convencer as mulheres a renunciarem ao conforto e segurança de suas casas e irem parir nos hospitais, médicos e hospitais acharam necessário prometer um parto e um bebê perfeitos. No entanto, se você brinca de Deus, você torna-se culpado pelos desastres maternos. Não existe um lugar onde a mortalidade materna ou a mortalidade perinatal sejam nulas. Ao longo da história, as mulheres aceitaram essa dura realidade – até recentemente, quando os médicos começaram a prometer a perfeição. Agora, quando algo dá errado, as mulheres e famílias sentem-se enganadas e buscam respostas, mas são freqüentemente evadidas por médicos e hospitais.

 

Talvez o litígio seja um mal necessário, fornecendo um cenário onde mulheres e famílias podem tentar encontrar respostas para suas preocupações num fórum público, o qual nem mesmo os médicos podem sempre evadir. O litígio funciona também como um sintoma, nos alertando sobre os sérios problemas subjacentes à assistência ao parto.

 

De qualquer modo, a obstetrícia defensiva não funciona. Durante os anos em que a obstetrícia defensiva se expandiu, não houve qualquer decréscimo nas ações judiciais.

 

A cesárea eletiva é conveniente; ela permite aos médicos se aproximarem de uma "obstetrícia diurna". Estudos do Reino Unido e dos EUA mostram não só que os nascimentos acontecem muito mais comumente de segunda a sexta-feira durante o dia, mas também, e mais surpreendentemente, que as cesáreas de emergência são realizadas em dias de semana preferenciais e no horário diurno.7 A cesárea leva 20 minutos, enquanto no parto vaginal o médico tem que permanecer no hospital por 12 horas ou mais. Em sistemas tais como os adotados nos EUA, no Canadá, na Bélgica e no Brasil, onde os obstetras são responsáveis pela atenção materna primária, incluindo as consultas pré-natais de rotina e o atendimento aos partos normais, a conveniência da cesárea é vital para sua prática.

 

Médicos e hospitais quase sempre são bem melhor remunerados pela cesárea do que pelo parto vaginal. Estudos dos EUA mostram que as candidatas mais prováveis à cesárea são mulheres brancas, casadas, que possuem plano de saúde privado e que dão à luz em hospitais particulares.7 Essas são as mulheres que apresentam os menores riscos de desenvolver complicações que possam exigir uma cesárea – um raro exemplo de mulheres abastadas que recebem uma assistência menos segura do que as mulheres de baixa renda. A OMS afirma: "Nos Estados Unidos o fator lucro explica as taxas de cesariana específicas dos hospitais, que foram altas mesmo para o padrão norte-americano".13

 

No sistema privado de saúde, a cesárea é um dos procedimentos cirúrgicos de grande porte mais comuns, lotando leitos e salas cirúrgicas e fornecendo uma importante fonte de renda. Os hospitais particulares competem por pacientes e desencorajam partos em ambientes não hospitalares. Interesses comerciais também promovem os partos de "alta tecnologia", que necessitam de equipamentos. As altas taxas de cesárea beneficiam os médicos, os hospitais e a indústria.

 

O direito à escolha

 

Uma mulher que consente qualquer procedimento médico deve ter acesso a informações completas e imparciais a respeito do que se sabe sobre as chances do procedimento tornar as coisas melhores (eficácia) e piores (riscos). Enquanto este princípio de escolha informada está ganhando aceitação, ainda há incrédulos, como o médico que, após a leitura de um esboço deste artigo, comentou: "Gostaria de saber se algum médico tem tempo a dispor, ou alguma paciente tem a paciência de ouvir, informações completas e imparciais a respeito do que se sabe".

 

Os médicos precisam, primeiramente, ter eles mesmos essas informações. Infelizmente, eles tendem a basear seus conhecimentos e práticas em "padrões de prática" estabelecidos por outros médicos – padrões que estão freqüentemente em descompasso com a evidência científica.14

 

Em um estudo de 1998, 76% dos médicos pesquisados conheciam o conceito de prática baseada em evidências, mas apenas 40% acreditavam que a evidência era muito aplicável em sua própria prática, apenas 27% tinham familiaridade com os métodos de revisão crítica da literatura, e, em face a um problema, a maioria consultaria um colega ao invés das evidências".15

 

O conhecimento insuficiente dos médicos sobre evidências é potencializado pelo fato de que novas informações sobre eficácia e riscos surgem continuamente. Um alvo em movimento demanda mais leitura.

 

Informações prontamente disponíveis aos médicos podem ser tendenciosas, produzidas por firmas comerciais com interesses lucrativos ou por organizações profissionais que têm o desejo de promover mais dados sobre procedimentos favoráveis aos médicos. Por exemplo, muitas organizações obstétricas promovem o parto hospitalar, omitindo as evidências sobre a segurança do parto domiciliar planejado. Os médicos também estão se voltando para a internet, onde as salas de bate-papos médicos estão repletas de informações errôneas sobre eficácia e riscos, sem qualquer controle de sua validade.

 

Alguns acreditam ser a ignorância dos médicos uma forma de negligência16. A menos que os médicos possam fornecer informações corretas, as mulheres não serão capazes de fazer escolhas verdadeiramente conscientes acerca da assistência à gravidez e ao parto.

 

Uma mulher que escolhe a cesariana como meio de evitar a "condenação bíblica a um parto doloroso" está extremamente mal informada. Ao escolher uma cesariana, ela troca 12 horas de dor de trabalho de parto por severas dores e debilidade pós-operatórias e um período de recuperação mais longo com semanas ou mesmo meses de dor.

 

Uma mulher liberada esforça-se, com toda a razão, para não ser controlada pelos homens, mas se ela aceita o dominante modelo obstétrico masculino, ela desiste de qualquer chance de controlar o seu próprio corpo e de fazer escolhas verdadeiras. Muito já foi escrito sobre como é libertadora para a mulher a experiência de dar à luz quando é ela quem controla o processo. Mulheres que exigem escolha, mas apenas obtêm informações selecionadas que favorecem os médicos, aliam-se inadvertidamente aos interesses médicos, embora chamem isso de feminismo.

 

Uma mulher tem o "direito" inalienável de escolher uma cesárea? Já foi claramente estabelecido na lei que um indivíduo tem o direito de recusar tratamento médico, mas isso não significa que o inverso também é verdadeiro – que um indivíduo tem o direito de exigir um tratamento médico que não tenha indicação clínica. Se uma mulher solicita uma cesárea, mas seu pedido é recusado por não haver indicações médicas, é correto dizer que ela será "forçada" a ter um parto vaginal? A gravidez não é uma doença. A maioria das mulheres não precisa de tratamentos médicos ou cirúrgicos durante a gravidez, o parto e o puerpério. O parto vaginal é a conseqüência da gravidez, um estado pelo qual a mulher e o seu parceiro sexual devem responsabilizar-se, e não a profissão médica.

 

Se um determinado procedimento vai contra os princípios religiosos do clínico, ele tem o direito de recusar executá-lo. Assim, um médico não pode usar a desculpa de que foi a mulher quem escolheu a cesárea, e então "eu sou obrigado a realizá-la". Se a mulher solicita uma cesárea para a qual não exista uma indicação clínica e que, até onde o saber médico vai, traz riscos para a mulher e seu bebê que superam qualquer possível benefício, o médico tem o direito, talvez até o dever, de recusar.

 

Se um paciente apresenta gripe e exige antibióticos, o clínico tem o direito de negá-los, sob o argumento de que antibióticos não irão ajudar e porque seu uso excessivo levará a uma resistência a esse tipo de medicamento que poderia ameaçar a comunidade como um todo. O uso abusivo de cesáreas eletivas também ameaça a comunidade. Nem mesmo os países mais ricos podem fazer tudo. Escolhas têm que ser feitas sobre que tratamentos médicos e cirúrgicos devem ser financiados. Uma cesárea que é realizada porque a mulher optou por este procedimento requer um cirurgião, possivelmente um segundo médico para assisti-lo, um anestesista, enfermeiros, equipamentos, uma sala cirúrgica, sangue disponível para transfusão e uma internação hospitalar pós-operatória mais longa. Se uma mulher é submetida a uma cesárea eletiva simplesmente porque essa é a sua preferência, haverá menos recursos para o resto do sistema de saúde. No Brasil há hospitais com taxas de cesárea de 100%, distritos sanitários com taxas de 85%, e um Estado inteiro com uma taxa de 47,7% de cesárea17. Isto representa uma enorme evasão dos limitados recursos do país. Para piorar, as taxas de mortalidade materna cresceram nas áreas do Brasil que apresentam essas altas taxas de cesáreas18. A cesárea a pedido é um luxo caro e perigoso.

 

Outra questão ética é o direito à igualdade de acesso ao sistema de saúde. Em muitos países não há igual acesso para todas as mulheres à assistência materna básica, como a cesárea de emergência. Mas uma questão ética muito diferente é colocada pela pergunta: se mulheres ricas podem escolher a cesárea, todas as mulheres deveriam ter esse direito? Discussões sobre a eqüidade de acesso precisam começar com a seguinte pergunta: acesso a quê? Deveríamos insistir que já que mulheres ricas podem pagar para aumentar cirurgicamente seus seios quando os acham pequenos demais, fundos públicos do sistema de saúde, apesar de limitados em todos os países, deveriam ser usados para permitir a todas as mulheres o aumento cirúrgico dos seios?

 

À luz dessas questões éticas, o Comitê para Aspectos Éticos da Reprodução Humana e da Saúde da Mulher da FIGO (a organização internacional que abriga as sociedades de obstetrícia nacionais) declara em um relatório de 1999: "Realizar cesariana por motivos não-médicos não é eticamente justificado"19.

 

Por que há uma promoção da escolha da mulher pela cesárea?

 

Depois de duas décadas de ascensão das taxas de cesárea em muitos países, esforços para reduzir esta taxa finalmente começaram a surtir efeito. A meta dos EUA de reduzir sua taxa de cesárea de 25% para 15% até este ano não foi totalmente atingida.

 

Entretanto, observa-se uma corrente contra este esforço para baixar as taxas de cesárea que se manifesta através de um questionamento das taxas de cesárea consideradas ótimas;1,4,5 de advertências de que uma redução desta taxa poderia ser perigosa;4 ou da alegação de que são as mulheres que querem a cesárea.1-5

 

Não há evidências de que uma taxa de cesárea maior do que 7% salve vidas.8 A taxa ótima mais citada é a de 10–15% da OMS.20 Este percentual foi calculado numa conferência da OMS que contou com 62 participantes de mais de 20 países.7 A partir de uma revisão minuciosa de trabalhos publicados, os participantes ficaram cientes de todos os riscos da cesárea. Eles então estudaram variações nas taxas de cesárea e descobriram que vários países com taxas de mortalidade materna e perinatal muito baixas tinham taxas de cesárea próximas a 10%. Não houve evidências de que taxas de cesárea acima deste nível reduziram as taxas de mortalidade. A recomendação consensual final foi modificada para 10-15% (10% para a população em geral, 15% para a população de alto risco). Esta recomendação não foi nem um pouco arbitrária.

 

Alguns acreditam que os bebês estão ficando maiores enquanto a abertura pélvica feminina, não. Não há provas de que os bebês estejam ficando maiores. Além disso, na Suécia, na Dinamarca e na Holanda a taxa de cesárea é próxima a 10%, com uma das menores taxas de mortalidade materna e perinatal do mundo – e não há evidências de que as mulheres desses países tenham bebês menores ou de que seus quadris sejam mais largos do que os das mulheres nos Estados Unidos, no Canadá ou no Brasil.

 

Alega-se também que avanços tecnológicos explicam porque "o nascimento se tornou muito seguro".4 Entretanto, não há provas da existência de uma relação causal entre o resultado do parto e o uso de tecnologia ou o aumento de cesáreas. Nesses últimos 20 anos não houve melhoras significativas nas taxas de paralisia cerebral, de baixo peso ao nascer, de mortalidade materna, ou no componente fetal da mortalidade perinatal nos países industrializados. Um estudo do Centro Nacional de Estatísticas da Saúde ("National Center for Health Statistics") dos Estados Unidos comenta: "As comparações das taxas de mortalidade perinatal com a cesariana e com o parto vaginal operatório não demonstram nenhuma correlação consistente entre países",21 um veredicto também proferido pela Unidade Nacional de Epidemiologia Perinatal de Oxford ("Oxford National Perinatal Epidemiology Unit"), na Inglaterra.22

 

Uma razão para a promoção de altas taxas de cesáreas é raramente discutida. Quando a assistência materna é caracterizada pela hegemonia médica e as parteiras são marginalizadas, as taxas de cesárea são mais altas – como, por exemplo, na América do Norte e no Brasil urbano. Incumbir um cirurgião obstetra altamente treinado de um parto normal é análogo a contratar um cirurgião pediatra como babá de uma criança saudável de 2 anos. As parteiras utilizam-se de um paradigma diferente ao focar não na potencial anormalidade da gravidez, mas na sua normalidade. Para uma parteira um parto pélvico é uma variação do normal; para um médico é uma condição patológica. As taxas de cesárea são menores quando parteiras em vez de médicos atendem o partoi. A promoção da cesariana faz parte de uma campanha para manter a profissão obstétrica no controle da assistência materna.23 Os médicos tendem a preferir a tecnologia; como um renomado obstetra do Canadá disse: "A natureza é uma má obstetra".

 

Referências

 

1 Harer W. Patient choice cesarean. Am Coll Obstet Gynecol Clin Rev 2000; 5: 2.

 

2 Al-Mufti R, McCarlin A, Fisk MN. Survey of obstetricians’ personal preference and discretionary practice. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 1997; 73: 1.

 

3 Controversies: should doctors perform an elective caesarean section on request? BMJ 1998; 317: 463.

 

4 Sachs B, Castro M, Frigoletto F. The risks of lowering the cesareandelivery rate. N Engl J Med 1999; 340: 54–57.

 

5 Showlater E, Griffen A. All women should have a choice; and Bastian H. Health has become secondary to a sexually attractive body. BMJ 1999; 319: 1397.

 

6 Hall M, Bewley S. Maternal mortality and mode of delivery. Lancet 1999; 354: 776.

 

7 Wagner M. Pursuing the birth machine: the search for appropriate birth technology. Sydney: ACE Graphics, 1994.

 

8 Enkin M, Keirse M, Renfrew M, Neilson J. A guide to effective care in pregnancy and childbirth, 2nd edn. Oxford: Oxford University Press,1995.

 

9 Goer H. The thinking woman’s guide to a better birth. New York: Penguin/Putnam, 1999.

 

10 Plaut M, Schwartz M, Lubarsky S. Uterine rupture associated with the use of misoprostol in the gravid patient with a previous cesarean section. Am J Obstet Gynecol 1999; 180: 1535–42.

 

11 Smith J, Hernandez C, Wax J. Fetal laceration injury at cesarean delivery. Obstet Gynecol 1997; 90: 344–46.

 

12 Birchard K. Defence union suggest new approach to handling litigation costs in Ireland. Lancet 1999; 354: 1710.

 

13 Stephenson P. International differences in the use of obstetrical interventions. Copenhagen: WHO European Regional Office, 1992.

 

14 Wagner M. The public health versus clinical approach to maternity services: the emperor has no clothes. J Public Health Policy 1988; 19:25–35.

 

15 Olatunbosun O, Edouard L, Pierson R. British physicians’ attitudes to evidence based obstetric practice. BMJ 1998; 316: 365.

 

16 Goodstein D. Conduct and misconduct. Ann NY Acad Sci 1996; 775:31–38.

 

17 Rattner D. Sobre a hipotese de establizacao das taxas de cesarea do Estado de Sao Paulo, Brasil. Rev Saude Publ 1996; 30:19–33.

 

18 Secretariat of Health. Sao Paulo State, Brazil, 1999.

 

19 FIGO Committee for the Ethical Aspects of Human Reproduction and Women’s Health. Ethical aspects regarding cesarean delivery for non-medical reasons. Int J Obst Gynecol 1999; 64: 317–22.

 

20 World Health Organization. Appropriate technology for birth. Lancet 1985; ii: 436–37.

 

21 Notzon F. International differences in the use of obstetric interventions. JAMA 1990; 263: 3286–91.

 

22 Lomas J, Enkin M. Variations in operative delivery rates. In:Chalmers I, Enkin M, Keirse M, eds. Effective care in pregnancy and childbirth. Oxford: Oxford University Press, 1989.

 

23 Wagner M. Midwifery in the industrialized world. J Soc Obstet Gynecol Canada 1998; 20: 1225–34.

 

24 Wagner M. A global witch-hunt. Lancet 1995; 346: 1020–22.

 

Wagner M. Choosing caesarean section. Lancet 2000; 356: 1677-80.

Tradução: Dan Gayoso, Júlia Morim e Moema Silva.

Revisão: Alice Morim.

 

 

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