top of page

Parto e arte

 

Há pouco tempo assisti a um concerto em minha cidade. No repertório, entre outras peças, foi executada a Sinfonia Concertante para violino e viola de Mozart. Os solistas eram talentosos e bem treinados e o resultado aproximou-se muito da perfeição. Palavra dura esta, ideal perseguido diariamente pelos que se dedicam a tocar um instrumento musical, mais ainda se a área de atuação for a música erudita.  Ouvimos gravações feitas em estúdios, em diversas tomadas e com colagens e retoques que se apresentem necessários para que a perfeição seja atingida. O som dos instrumentos é captado pelos mais modernos e sensíveis microfones e se  a sala não oferecer os recursos acústicos ideais, é possível acrescentar a ambiência desejada por meio de avançados softwares. Nada de errado por enquanto, pelo menos no que diz respeito a registros. A música erudita, dentro de seu rígido formato, oferece menor possibilidade de improvisação e devaneio que a música popular, mas ainda assim há espaço para a impressão da personalidade de seus executantes. O que vi naquele concerto e em tantos outros a que tenho assistido foi a impessoalidade, a eliminação da imprevisibilidade, a absoluta falta de entrega emocional em função do controle técnico, a primazia da homogeneidade, enfim, a destituição de qualquer traço de humanidade diferenciador.

 

Arte?

 

Ficou nítido também que os executantes não estavam tendo PRAZER, embora suas habilidades técnicas tenham ficado mais que evidentes e a PERFEIÇÃO almejada tenha sido atingida. É provável que outro espectador do mesmo concerto me considere louca. Infelizmente vejo um futuro onde seremos facilmente substituídos por sintetizadores, que estão cada dia mais próximos de reproduzirem exatamente o timbre de nossos instrumentos. Se a execução se aproximar de tal rigor matemático/perfeito, nada impedirá que isso ocorra e que, pior, nem notemos a diferença. Por medo de errar, estamos extirpando a humanidade do processo artístico, que perfeição é essa que perseguimos? Por que acreditamos que o aprimoramento técnico e o excesso de tecnologia definem o que é perfeito?

 

Assim também vejo a maneira como a medicina moderna encara o nosso corpo:  uma máquina dividida em muitas peças, sujeitas a toda sorte de problemas, de fabricação ou de desgaste, cada qual com seu técnico responsável. Se uma das engrenagens funciona mal, procuramos o especialista formado nas universidades após anos de estudo e prática, e obedecemos cegamente às suas instruções.

 

Não tem sido diferente em relação ao evento do nascimento. Qualquer aspecto humano é simplesmente eliminado pelo técnico cirurgião de  útero quando este decide levianamente que o parto será uma cesariana. TODAS as mulheres serão PERFEITAMENTE deitadas, amarradas, anestesiadas e cortadas igualmente, num processo de linha de montagem de fazer inveja ao senhor Ford. TODOS os bebês ficarão em observação no berçário, tal qual vitrine de doceria, tomando leite artificial e chorando pela ausência de suas mães impossibilitadas de cuidá-los. Nada admirável mundo novo...

 

Terá a cultura da cesariana em nossa sociedade alguma relação com a perseguição do ideal de perfeição? Penso que talvez, já que partimos do princípio de que o que pode ser previsto e controlado tem mais chance de ser  “perfeito“. Também tendemos a considerar perfeito aquilo que proporciona maior produtividade. Muitas cirurgias de nascimento realizadas diariamente garantem eficiência à toda prova.

 

Como poderá o técnico cirurgião de útero entender e respeitar a imprevisibilidade de um trabalho de parto? Como poderá aceitar que não haverá padronização possível? Como poderá encarar que existe PRAZER em parir? Como poderá concluir que o útero faz parte de um todo PERFEITO  chamado mulher? Como poderá desistir de ser o protagonista para ser o coadjuvante?

 

Sempre me pareceu estranho o termo humanização do nascimento, não fazia sentido para mim "humanizar" algo que é intrinsecamente humano. Hoje compreendo o significado absoluto desse termo e acho que não é apenas o nascimento que tem sido comprometido pela "desumanização" em nossa sociedade, a arte também. Caminhamos todos para o lodo da indiferenciação.

 

Após o nascimento da Júlia, minha filha, de parto natural, entendi que aquele processo foi o meu maior momento de criação artística. Sim, nada mais pessoal e impossível de se repetir que o trabalho de parto, que exija tanta entrega e dedicação e que possa trazer à tona o que de mais profundo, instintivo e essencial reina em nosso ser, que nos aproxime de conhecer verdadeiramente nossos limites e o potencial de superação dos mesmos.  Enfim, nada tão humano e perfeito em sua imperfeição.

 

Roberta Marcinkowski

Mãe de Júlia (parto natural hospitalar) e Musicista

bottom of page